Uma voz antiga me sussurrou no ouvido que existem três manifestações da Deusa. A primeira é a Terra, onde vivem todos os seus filhos e onde crescem as plantas que os alimentam. O segundo é o céu noturno e todas as suas estrelas. A terceira é o corpo feminino, não sua alma, caráter, identidade ou comportamento, mas seu corpo.
Curadoria de Michele Santoro
No século 21, o status quo da pintura é como nunca antes. Por causa da internet, estamos conectados ao mundo e as suas histórias numa vasta biblioteca de imagens acessível a todos. A tendência é acelerar o processo de produção, ser rápido e reagir imediatamente ao que está a acontecer socialmente em escala global. No século 20, os artistas lutaram por uma liberdade que a geração atual explora à vontade. Professores de técnica estão dentro do alcance, assim como livros gratuitos que explicam a disciplina necessária para o realismo. Não há segredos na pintura, não mais, tudo já foi feito e podemos ver nos nossos ecrãs num instante, então qual seria o próximo passo?
Fernandes nasceu em Maputo, cresceu na Holanda e lá viveu vinte e dois anos. Durante este tempo estudou artes plásticas em Haia e regressou a Maputo em 2013. O Jorge disse-me várias vezes que começou a pintar a sério apenas quando estava no seu local de nascimento, por volta de 2015 tomou a decição. Era uma questão de voltar a isso, pois ele desenhava desde sempre.
Durante os nove anos na cidade Fernandes fez fotos de pessoas, edifícios, plantas, paisagems, tudo que achou interessante. Assim criou um banco de dados de dezenas de milhares de fotos, que combinado com a internet forma a biblioteca visual na qual as pinturas se baseiam. Pode levar anos até que ele realmente use uma ou duas dessas fotos como base para uma pintura. Em termos práticos, a fotografia e a posterior edição de imagem funcionam como esboços para as obras.
Através de conversas ao longo dos últimos anos e do testemunho da criação de muito trabalho do Jorge percebi que Fernandes se interessa bastante pelo que acontece na sociedade. Ele interpreta Maputo da mesma forma que os surrealistas antigos interpretam os sonhos: com a teoria psicológica numa mão e uma câmara fotográfica na outra.
Embora se possa dizer que Fernandes emprega um maneirismo surrealista, o trabalho tem uma intenção social-realista, que significa que ele parece tentar abordar a dinâmica da sociedade através da linguagem da pintura figurativa. Certa vez, numa conversa, chamei seu trabalho de ‘misticismo social’, ele não se opôs a isso. Jorge inspira-se na situação de Maputo, escolhendo indivíduos específicos para fazer um comentário social depois de ler os documentos do IESE. As pessoas nas obras de Fernandes tornam-se parte de um vocabulário visual, e parecem estar cientes disso. Muitas vezes o foco está num sujeito isolado, que se aparece localizado num espaço entre o real e uma paisagem onírica.
Há uma tensão silenciosa nas obras que traz uma atmosfera enigmática, como se houvesse segredos um pouco além do que se mostra. As figuras parecem estar dentro do assunto, algumas olham diretamente para o espectador como se estivessem plenamente conscientes de quem está olhando para elas e por quê.
Ao olhar para suas obras dos últimos nove anos, pode-se ver três ou quatro minisséries, se quiserem, que formaram os vários capítulos da exposição. Os arquétipos são o alfabeto de um subconsciente social, disse o psicanalista Gustav Jung. São padrões básicos de comportamento, configurações elementares do nosso ser central que formam o fundamento da sociedade. A linguagem arquetípica usada por Fernandes retrata uma visão de mundo em que divindades antigas e contemporâneas fazem parte do mesmo mundo que os cidadãos comuns. Alguns dos plebeus parecem ter se transformado em deuses. É como se eles tivessem um papel a desempenhar numa ópera de proporções galácticas que só é sentida, mas não conhecida. Um conto inpenetrável se manifesta entre as próprias pinturas, esperando que o espectador a decodifique.
Não há tomada de posição política, mas é claro que Fernandes tenta criar uma arte que desafie o status quo social. Alguns cidadãos, por exemplo um filósofo chamado Ngoenha, inspiraram a criação de personagens fictícios dos quais se transformou em pintura. ‘Ngoenha Rex’ (2021) é um exemplo do arquétipo do rei-filósofo.